O Estado Novo aos olhos de uma criança

Na próxima semana, o dia 25 de Abril de 1974 vai fazer 46 anos, um dia que marcou a história de Portugal e que ficará para sempre gravado nas memórias de muitos portugueses.

Foi um dia de mudança, de queda de um regime autoritário, conservador e ditatorial, que deixou marcas ainda visíveis em muitas mentalidades. Muito se fala das atrocidades e estranhezas que eram cometidas durante o Estado Novo, sabemos muitas histórias de perseguição e de resistência, mas pouco se fala daquilo que era a visão das crianças.

Desse modo, o Desacordo entrevistou um indivíduo, de seu nome Jorge, nascido no ano de 1960 – o que significa que viveu durante 14 anos sob a alçada deste antigo regime – procurando saber como era ser criança no “tempo do Salazar e da primavera marcelista” através de várias perguntas relativas ao tema.

Percebias que vivias numa ditadura?

“Não, não percebia que vivia numa ditadura porque ainda era muito novo e não entendia o lado político da questão, mas percebia que algo não estava bem e que havia alguma coisa estranha a pairar no ar. Tinha este ponto de vista por causa de várias situações insólitas que se iam passando no meu dia-a-dia.

Por exemplo, uma vez estava a jogar à bola na rua com uns colegas meus, e nem sequer estávamos a usar uma bola de futebol mas sim uma bola de plástico, pequena, semelhante a uma bola de golfe, e apareceu um homem barrigudo que nos agarrou a bola e que ralhou connosco, dizendo que era proibido jogar à bola na rua. Em seguida, abriu o casaco e mostrou-nos um distintivo que parecia uma estrela da polícia. Presumo eu que fosse um agente da PIDE-DGS, não sei, mas veio para ali intimidar miúdos de sete anos por estarem a brincar na rua. Um sinal de que vivíamos num país com um regime e um ambiente que não eram normais.

As próprias figuras políticas, nomeadamente o presidente Américo Thomaz e o primeiro ministro António de Oliveira Salazar, pareciam-me estranhas demais, bem como o comportamento que as pessoas tinham em relação às mesmas. Lembro-me de uma vez estar a falar com a minha avó e mencionar o “Salazar” e de a reação dela ter sido mandar-me falar mais baixo, em modo de censura, com o argumento de que “não se podia falar do Salazar”. Sem explicar porquê, claro.

Uma das coisas que mais me impressionava, pela negativa, era a guerra colonial. Lembro-me de vizinhos meus e hóspedes da minha avó receberem telegramas e homens do exército em casa com as informações de que lhes tinha morrido um familiar, normalmente um filho ou um irmão, nas colónias. Eu não percebia o porquê de haver uma guerra nem de estarem a morrer pessoas, mas percebia que não era algo bom.”

Que valores é que eram incutidos pelos adultos às crianças?

“Os valores que eram incutidos pelos adultos às crianças tinham a ver, sobretudo, com uma certa estratificação e hierarquização sociais. Ou seja, que havia pessoas que mandavam e outras que obedeciam. Desde pequenos que nos diziam este tipo de coisas, o que não fazia nada bem à nossa auto-estima. Eu sentia que vivia numa camada inferior da população e que havia pessoas mais importantes do que eu, que valiam mais do que eu e que sabiam mais do que eu. Isto era-nos transmitido não só pelos pais em casa, que por sua vez também foram educados desta maneira, mas também na escola.

Diziam-nos que haviam pessoas muito importantes, por exemplo o Cardeal Cerejeira (uma figura religiosa) que nos dirigiam e que estavam num patamar superior a nós, não só no plano social mas também no plano humano, eram quase deuses. A religião era outro valor inquestionável que nos era transmitido. A separação estado/religião era muito ténue. A ideologia religiosa estava presente em todo o lado e era um dogma absoluto. O que nos ensinavam era que só havia uma religião, a dita “católica apostólica romana”, que era obrigatório acreditar em Deus e que dizer mal da igreja era pecado. Na verdade, quase tudo era pecado. Ser ateu era pecado, criticar a religião era pecado, quase tudo era pecado, até respirar. Uma vez disse à minha mãe que não acreditava em Deus e ela deu-me um raspanete, o que é compreensível tendo em conta a geração a que ela pertence, uma geração educada no medo, por aquilo que dizia o pároco da aldeia.

Havia, também, um nacionalismo exacerbado. Ouvia-se comentários como o típico “pobres mas honrados” ou “a bandeira portuguesa é a mais bonita do mundo”. Isto para mim não fazia sentido nenhum, porque via as bandeiras de outros países e achava que estas eram mais bonitas que a nossa.

Penso que, com este tipo de educação, o Estado Novo pretendia limitar o pensamento das pessoas e fazer passar a ideia de que quem pensava de maneira diferente era um marginal.”

Como era a escola?

“A escola era uma coisa muito engraçada, para começar os rapazes estavam separados das raparigas, mas isso quase toda a gente sabe. O meu livro do ensino básico foi o livro por onde estudou o meu pai, nos anos 30, o que reflete que o ensino era estático e que as coisas não mudavam.

“Fui para o meu primeiro dia de aulas cheio de medo porque ele me disse que eu tinha de me portar bem se não levava reguadas (mais um traço da tal conceção de que devíamos “obedecer, obedecer, obedecer”). Portanto, quando fui para a escola não ia com a ideia de que ia aprender a ler, a escrever e a ver coisas bonitas mas sim de que ia apanhar reguadas e “levar porrada”. Inclusive, esqueci-me de trazer os meus cadernos e canetas e comecei a chorar com receio da régua aterrorizante (porque, lá está, pensei que tinha cometido um grande pecado). No entanto, o meu professor disse que não havia problema nenhum, o que teve em mim um efeito bastante positivo, pois percebi que, afinal, a escola não era uma coisa assim tão má.

Na sala de aula, tínhamos o seguinte quadro: um estrado com dois degraus onde estava o professor e, na parede, de cada um dos lados, uma fotografia de Américo Thomaz e outra de Salazar e um crucifixo com Jesus no meio.

Os professores, curiosamente, eram relativamente diferentes uns dos outros.
O meu professor da segunda classe, era, nitidamente contra o regime. Desconfio que até faria parte do Partido Comunista. Chegava às partes religiosas presentes nos livros escolares e passava-as à frente, dizendo que aquilo “não interessava”, provavelmente porque nem ele próprio se sentia confortável com o ensino em que se via obrigado a trabalhar.

Por outro lado, a minha professora do terceiro ano, cujo nome curiosamente não me lembro, porque não a valorizava, era completamente o oposto. Obrigava-nos a levantar e rezar o Pai Nosso antes de começar a aula, durante um ano letivo inteiro. Como nunca gostei de rezas e não entendia o porquê de ter de o fazer, esta professora tornou-se-me particularmente antipática.”

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Qual era a visão que tinhas do estrangeiro?

“A visão que eu tinha do estrangeiro era uma visão muito diferente daquela que me era transmitida, quer pelos meus pais quer pela escola.

Na escola nem sequer se falava no estrangeiro. Dizia-se que “Portugal era um país pequeno mas que tinha territórios em África que eram 14 vezes maiores” mas não se falava da Europa, não se falava de Ásia, não se falava dos grandes países que existem no continente americano. Era como se o mundo fosse só constituído por Portugal e pelas colónias.

A minha primeira noção de que havia “estrangeiro” foi-me proporcionada pelos livros da Disney. Comecei a ver nesses livros referências a outros países – por exemplo, o rato Mickey na Torre Eiffel – e, assim, percebi que havia mais mundo além do meu bairro.

A televisão também me ajudou a ter esta perceção, nomeadamente as séries “Os Vingadores” e “O Santo”. Eu via as grandes cidades, como Londres, Paris e Nova Iorque, com os seus arranha céus e começava a fazer comparações. Apercebi-me que vivia num país pequeno (até porque o meu prédio só tinha dois andares e o prédio mais alto em Lisboa tinha uns dezoito) e que havia um mundo que, de certa forma, nos era ocultado, mas que era muito melhor.”

Para além das situações que já referiste, que outras memórias marcantes tens do Estado Novo?

“A mais marcante é, talvez, a guerra colonial. Por exemplo, a reportagens de Natal e Páscoa onde apareciam soldados com um sotaque que eu mal entendia e oriundos de meios rurais – pessoas que não tiveram a sorte de ter educação mas que tiveram o azar de ir parar à guerra – causavam-me imensa estranheza. Ria-me mas questionava o porquê daqueles rapazes que desejavam “um ano novo cheio de propriedades” (em vez de prosperidades) estarem ali, com saudades da família e sem saber se iam voltar. Questionava o porquê de estarem a lutar e, alguns, a morrer.

Outra das coisas mais impressionantes de que me lembro aconteceu na altura em que começaram a aparecer os primeiros turistas em Lisboa (por volta do início dos anos 70). Na Europa, já tinha passado a revolução pop e muitas raparigas estrangeiras já andavam de calções. Então, havia homens que paravam – e não era um nem dois mas grupos de três e quatro – e que se punham a observá-las de forma ostensiva e pouco educada. Não compreendia, não compreendia o porquê daqueles homens estarem a incomodar as raparigas daquela maneira. Agora compreendo, naquela época era um escândalo público andar de calções na pacata e fechada cidade de Lisboa.”

Como foi o teu dia 25 de Abril de 1974 e o que sentiste?

“O meu dia 25 de Abril começou de uma forma muito curiosa. A minha mãe levantou-se pelas seis da manhã e, como de costume, foi comprar o pão para o nosso pequeno almoço. Quando regressou, ouvi-a dizer ao meu pai: “Ó Manel, estão a dizer que há soldados na baixa com tanques de guerra. Passa-se alguma coisa, vou telefonar à polícia”. Então, lá telefonou ela para a PSP para saber se saía de casa ou não. Eles disseram que sim, pois nem eles sabiam o que se estava a passar.

Os meus pais foram trabalhar e eu fui para a escola. Quando lá cheguei, mandaram-me a mim e aos meus colegas para casa (por questões de segurança, podia haver disparos por parte do exército e até havia algum receio que começasse uma guerra civil) mas nós ficámos na rua, tal como a maior parte das pessoas fez. Fomos para a Penha de França ver o chaimite que estava lá parado. A rua estava cheia de pessoas, adultos e crianças, parecia uma festa – podia não ter sido, mas felizmente acabou numa coisa boa.

Não sei exatamente o que senti mas entendi que algo novo estava para vir, uma mudança contra aquelas “coisas feias” que eu conhecia e que aquelas suspeitas que eu tinha de que vivíamos numa sociedade que não era normal estavam a ser confirmadas.

Fiquei aliviado por saber que o Marcello de Caetano ia deixar de aparecer na televisão com as suas mensagens de mau agouro e a falar da guerra colonial.”

Achas que a mentalidade do Estado Novo ainda está presente nos dias de hoje?

“Sim, e acho que vai perdurar durante muitas gerações porque marcou o modo de pensar de muita gente. Além disso, era a mentalidade de uma ditadura e as ditaduras não morrem, são contagiosas. Hoje em dia assistimos ao crescimento das extremas direitas que vêm ressuscitar valores típicos do Estado Novo como o amor pelas touradas, a xenofobia (a ideia de que os imigrantes são culpados de todo o mal que nos acontece) a homofobia, de que antes nem sequer se falava porque supostamente não podiam haver outras orientações para além da heterossexual (lembro-me de, já nos anos 90, o meu pai me perguntar se “havia mesmo homens que gostavam de outros homens”). Infelizmente, estas ideias estão presentes não só em pessoas mais velhas como também em jovens.

Esta visão de Jorge pode não ser necessariamente a visão de todas as pessoas da sua idade, mas de certeza que abrange um vasto leque de indivíduos que passaram a infância desta maneira. Viver no Portugal do Estado Novo era viver não só numa época diferente mas também num país diferente.”

Escrito por: Beatriz Gouveia Santos

Editado por: Cláudio Nogueira

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