”Tourada” de Fernando Tordo: uma breve análise do ponto de vista da Ciência Política

Neste artigo e à luz do conceito de cultura cívica, pretendo analisar criticamente, mas brevemente, do ponto de vista da Ciência Política, o papel da música de intervenção no processo democrático português – tomando como exemplo a canção vencedora do Festival da Canção de 1973, Tourada, interpretada por Fernando Tordo e com composição de José Carlos Ary dos Santos.

Capa do single ”Tourada” de Fernando Tordo. Fonte: Wikipédia.

Encontramo-nos na década de 70. Portugal encontra-se mergulhado num período de enorme agitação de âmbito político e social, caraterizado pela ditadura do Estado Novo – onde o país foi inicialmente governado sob a liderança de António de Oliveira Salazar e, posteriormente, Marcello Caetano. O Estado Novo, cujo início se deu em 1933, é definido como um regime autoritário e de jugo extremamente conservador, onde qualquer forma de oposição política era imediatamente reprimida, limitando assim as liberdades civis e os direitos democráticos dos cidadãos de Portugal.

No entanto, durante o final dos anos 60 e começo dos anos 70, a insatisfação popular face às políticas repressivas foi aumentando, levando ao surgimento de vários movimentos de resistência e contestação, entre os quais grupos clandestinos (como o caso do Partido Comunista Português e o Movimento das Forças Armadas) e movimentos sociais e culturais que procuravam a mudança de paradigma em temos sociais e políticos.

O movimento estudantil aquando do Maio de 1968. Fonte: Memorial da Democracia.

É neste contexto que a música de intervenção emerge como uma poderosa arma de expressão tanto artística quanto política – emergindo, também, a capacidade de transmissão de mensagens de protesto, de crítica social e de resistência ao regime. Foi encontrada na música uma maneira de oferecer voz às aspirações e frustrações de um povo altamente limitado pelo regime vivenciado, utilizando maneiras metafóricas e simbólicas de forma a evitar a censura.

‘’Uma teoria geral da política não pode ignorar a questão do modo como as sociedades lidam com a natureza política das coisas e deve assumir que as possibilidades de mudança são sempre bastante limitadas. No entanto, interiorizar teoricamente tais limitações não é, de modo algum, aprová-las ou regozijar-se com elas.’’ (Higley, 2010).

Tal como John Higley discorreu no seu livro ‘’Elites e Democracia’’, as possibilidades de mudança, apesar de bastante limitadas, não são coerentemente aprovadas pela população. E uma população descontente é uma população mais suscetível à revolta, à impiedade, e ao sarcasmo/troça face aos seus representantes.

Cartoon português durante a era salazarista. Autoria de João Abel Manta. Fonte: arquipelagos.pt

Tendo como pano de fundo a música de intervenção ‘’Tourada’’ de Fernando Tordo, verifica-se, portanto, um papel ativo na rebelião promovida por uma população portuguesa descontente, sem visualização de um rastro de luz no futuro, e muito menos um presente democrático. Esta canção tornou-se efetivamente um hino de resistência, onde a metáfora da tourada foi eximiamente utilizada de forma a representar a luta do povo português contra a opressão do Estado Novo. O seu lançamento coincidiu precisamente com um período de crescente mobilização popular e agitação política, contribuindo ainda mais para a sua disseminação.

‘’Não importa Sol ou sombra / Camarotes ou barreiras / Toureamos ombro a ombro / As feras’’

Apesar de todas as dificuldades sentidas a nível político e social num Portugal altamente ditatorial, preso pela repressão e em que cada movimento tinha de ser extremamente calculado, a verdade é que Tordo foi capaz de, através de analogias várias, ter a noção de que, apesar de todos os ‘’camarotes ou barreiras’’, os portugueses conseguirão, eventualmente, compactuar entre todos, toureando as denominadas ‘’feras’’ (o regime de opressão de António Oliveira Salazar e, mais tarde, Marcello Caetano).

‘’Com bandarilhas de esperança / Afugentamos a fera / Estamos na praça / Da Primavera’’.

Com a esperança de um povo, motivação e movimentação adequadas, mesmo estando na praça da Primavera Marcelista, é possível afugentar a fera da ditadura. Fernando Tordo apresentou esta música no Festival da Canção de 1973, em plena Primavera Marcelista, completamente apavorado com o facto de poder ser preso em palco durante a sua apresentação.

As bandarilhas de esperança representadas durante a atuação de Fernando Tordo. Fonte: Medium.

A verdade é que, segundo Weisband e Thomas, referidos no livro ‘’Sociologia Política e Eleitoral’’ de Paula do Espírito Santo, a cultura política ‘’vai ao cerne da política, do que liga os seres humanos numa crença comum ou compromisso a uma ideia coletiva, ideal ou ideologia’’. É deste modo que, munidos de uma crença comum de saída de plena ditadura, a população se une à ideia da possibilidade de almejar por um futuro próspero, sem medos, pegando ‘’o mundo pelos cornos da desgraça / E fazermos da tristeza / Graça’’.

Em síntese, no meio da inexistente liberdade, a música ‘’Tourada’’ foi capaz de oferecer um espaço para a expressão das vozes dissidentes, amplificando a esperança de um futuro democrático. A cultura política, moldada pelos ideais de mudança e de resistência, foi fundamental na construção de uma narrativa coletiva de luta pela liberdade e pela justiça social, demonstrando-se assim o potencial transformador da arte na esfera política.

Este artigo de opinião é da pura responsabilidade da autora, não representando as posições do desacordo ou dos seus afiliados.

Escrito por: Madalena Batanete

Editado por: Joana Matos

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